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Ontem, hoje e amanhã

Na coluna "Sincera forma do mundo" de maio, Gabriel Martins fala sobre os filmes “Olhos de Erê”, de Luan Manzo, e “Edna”, de Edna Toledo

Publicado em 02/05/2024

Atualizado às 14:49 de 03/05/2024

Por Gabriel Martins

Durante a pandemia, eu me deparei com duas obras em curta-metragem muito especiais e que, desde então, seguem vivas no meu pensamento. São filmes que guardam muitas similaridades, embora, curiosamente, sejam feitos por pessoas de idades distantes: um garoto de 6 anos e uma mulher de 60. As obras são Olhos de Erê, de Luan Manzo, e Edna, de Edna Toledo.

São filmes no sentido de obras sistematizadas para passar em festivais de cinema e eventos artísticos. São também retratos bem específicos, um lugar bem particular de autorretratos em terceira pessoa. Ambos foram feitos com celular por duas pessoas que não têm formação cinematográfica tradicional. Ao mesmo tempo, existe ali um olhar único e vasto para a potência da imagem, em um encontro raro entre formato e desejo, no qual o resultado parece refletir um estado bruto de expressão, consciente de seu ato (são performances, cada um à sua maneira), mas, ao mesmo tempo, bastante costurados por uma naturalidade do fluxo do tempo – algo fortalecido pelas estruturas em plano sequência.

Olhos de Erê é um filme, em formato vertical, no qual Luan mostra o Quilombo Manzo, casa de sua avó Makota Kidoiale, e descreve os detalhes do terreiro explicando aos espectadores o que está em quadro. Percebe-se pelos comentários que o vídeo é como se fosse um capítulo do seu canal no YouTube (que existe), mas organizado como filme – que foi contemplado com o Prêmio BDMG Cultural/FCS de Curta-Metragem de Baixo Orçamento. Luan nos avisa, logo no começo, que desta vez ele não vai aparecer no vídeo. E, embora o seu rosto de fato não apareça, o filme é ele.

Luan narra o tempo inteiro e, no movimento da câmera, percorre aquele espaço. A sensação é de estarmos, de fato, nos olhos desse menino, na sua altura, no seu ritmo, na sua voz. Poucas vezes uma obra conseguiu encapsular tanto sobre a infância de uma criança em tão curto tempo. De forma muito leve, somos também imersos num fluxo de descrição do espaço, que naturaliza também a presença do sagrado naquele ambiente onde é importante a foto do santo, a conta de kota, o filtro de água, a cadeira e por aí vai. Luan navega por esses objetos descrevendo o óbvio e o não óbvio – e, nisso, sua voz automaticamente eleva a imagem, transformando-a em algo importante. Assista o filme aqui.

Edna é feito como parte do projeto Anti: residência fílmica antifascista, da Anarca Filmes, idealizado por Clarissa Ribeiro e Lorran Dias. Na obra, Edna Toledo filma o seu quarto e objetos que fizeram parte da sua vida, como remédios, exames de raio X, fotos, receitas médicas e medalhas. Ela conversa consigo mesma, questionando-se e refletindo sobre o passado, suas decisões, sua enfermidade –

 entendemos que ela tem fibromialgia – e sua batalha para manter a sanidade diante de incômodos físicos e emocionais. Nessa viagem por sua própria história, Edna nunca mostra o rosto, apesar de estar presente nas fotos. Sua fala é, por vezes, irônica e revoltada, questionando a vida e a morte. Assista o filme aqui

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Quando assisti a essa obra pela primeira vez, fui pego imediatamente por um sentimento de nunca ter visto uma mulher negra, especialmente nos seus 60 anos, se expressar dessa forma em um filme. Embora os relatos de Edna falem sobre dor, algum arrependimento, erros e decepções, o filme nunca nos permite olhar para ela com condescendência. Melhor: nunca nos permite olhar para o seu filme julgando a sua história. Nisso, o caráter de performance ali presente fortalece muito essa narrativa de autorretrato em terceira pessoa (Edna faz perguntas para ela mesma) ao construir uma espécie de poema improvisado. As palavras vão surgindo com os objetos e, em seguida, se firmando com frases impactantes, precisas, dolorosas, cômicas. Edna está sempre à nossa frente, ali na curva, e a gente sem saber onde aquela estrada vai dar.

Na imagem está uma ficha de declaração de uma mulher negra, de cabelos curtos e escuros.
"Edna", de Edna Toledo (imagem: frame de vídeo)

O dispositivo que encapsula essas memórias – no caso, o celular – encontra também sua própria potência. A textura da imagem nos traz alguma sensação de crueza, sem grandes mediações plásticas, ao mesmo tempo que tem uma leveza própria. Traz uma câmera que pode chegar perto e longe de forma simples, que pode percorrer toda uma casa ou um quarto muito conectada com o tempo e o olhar de quem a segura. A sensação que temos é desse filme que existe na intimidade entre nós (o celular) e as personagens/cineastas, que nos contam a história.

O sentimento de presença se torna ainda mais forte por essa narração errante dos filmes, que respondem ao que o momento traz, deixando a própria aparição de objetos e espaços ditar o roteiro. Impressionante como, ainda que diante da aparente espontaneidade, o ritmo das obras jamais se torna enfadonho ou redundante. No momento em que um vazio – importante – ocupa a imagem e o som, a condução narrativa eventualmente já nos abre novos portais. Tudo que se fala também parece carregar sentidos múltiplos. É quando estória e história se entrecruzam na vida dos personagens.

Na imagem está uma mão segurando um objeto parecido com uma corda fina, nas cores verde e amarelo.
“Olhos de Erê”, de Luan Manzo (imagem: frame de vídeo)

Embora eu tenha visto esses filmes em momentos distintos, ambos me perseguem sempre em conjunto. São obras muito filiadas à sua contemporaneidade, seja pelo próprio registro em celular, seja pela percepção de uma ideia maior de existência de si em um mundo audiovisual – em performance, museu ou canal de YouTube. Mas, acima de tudo, são filmes que conseguem falar ao mesmo tempo de subjetividade e de cinema como forma artística. Enquanto somos, muitas vezes, bombardeados com artistas que se colocam como mestres da imagem, mas não conseguem imprimir um frame de honestidade, temos aqui o desejo de expressão como motor central de um cinema intenso, de documentação de vida, de filmar para eternizar.

Acima de mercado, de carreira, de tema, de origem, de sensor da câmera, de lente – mas tudo isso também. Esses filmes não são acidentes, que fique combinado. Eles são passos seguintes na contação de histórias, resultados de uma possível democratização do meio que há muito já é real e que frequentemente nos dá pérolas como essas. Luan e Edna conseguiram olhar na medida certa para o seu redor e, simultaneamente, para dentro de si. Nasceram obras vivas em constante renovação. Obras de ontem, hoje e amanhã. O sentimento final é que cabe muita coisa naqueles planos-sequências. Cabem histórias de um povo preto. Cabem quintais do Brasil. Cabem histórias de meninos de olhos brilhantes e de mulheres de olhos cansados, todas expressões sinceras do que a vida é.

Coluna escrita por:

Gabriel Martins

Gabriel Martins

Cineasta mineiro. Seu filme mais recente é Marte um.
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